ABISMO
Sou uma coletânea inteira de uma obra só.
Entre papéis e rabiscos desenhei meu próprio rumo.
Mal sabia eu que boa parte desse rumo estaria traçado por outras mãos.
Os abismos assustadores que encontrei em mim, foram criados.
Outras vontades sobrepostas às minhas.
Anseios e desejos e desdéns que tomaram proporções exorbitantes.
Outros braços me trouxeram até aqui e não os via.
Minha história, entre beleza e caos, não foi escrita só por mim.
Eu descrevo os enredos que movimentaram meu mundo e meus modos.
Os abismos sempre estiveram aqui e hoje sei o nome deles.
Esse conjunto imenso de vazios em multidões.
Esse afogar-se em opiniões, que me desmotivaram e enfureceram tanto.
Os monstros que criamos e os medos que suportamos ali, nos encarando da profundeza.
No escuro da imensidão, sentindo o vento forte e seu rugido.
Todas as vozes que gritam ao mesmo tempo: pule.
Se entregue ao desejo mais sincero de sangue. Pule.
Vá de encontro ao pior lado do ser humano. Pule.
Engasgue com suas próprias lágrimas e gritos. Pule.
Se machuque para não matar ninguém. Pule.
Não dome sua ira. Pule.
Ou não pule e fique nos olhando encenar.
Olhe as danças das luzes que passam por entre o abismo ao nascer do sol.
Olhe como as gotas de chuva caem na imensidão e mudam os sons.
Veja a beleza que há na profundidade do caos.
Sinta ser a barreira entre a vida e a morte.
Suporte o vento que lhe empurra.
Suporte os uivos da ventania.
Não vá ainda pois é cedo e temos que ver o sol se por.
Ainda tenho muitos chás da tarde para tomar.
Perceba a luz por dentre a nuvem que se prostrou cobrindo o abismo.
Não vá ainda porque ainda não aprendeu a voar.
Os filhos dos filhos ainda não aprenderam os nomes.
São tantas variáveis mas sempre a mesma razão.
Sobreviver à beira de um abismo.
O abismo está para todos, conta se olharmos ou não.
Dizem que ao olhar para o abismo ele nos olha de volta.
Mas ele sempre nos olhou, sempre esteve lá.
O que antes era dúvida agora já tem nome.
O abismo que me habita e hoje tenta sair, tem nome.
Estar à beira de uma ponte que não existe.
Estar rodeado de pessoas e enxergar vazio.
Ver sorrisos e sentir as tristezas.
Entender que a loucura real é ser normal.
Ser normal em um mundo que nos grita: pule.
Estar vivendo no limite imposto por outros juízes.
Ser réu de seu próprio destino.
Viver intensamente as dores do mundo.
Lamentar perdas que não perdi.
Sentir dores que não me pertencem.
Enxergar o cinza do mundo enquanto o mundo tenta ser arco-íris.
Borderline, estar na linha de borda.
O fim do pavio.
A linha de chegada.
A corda-bamba.
Muitas vezes me perdi.
Todas elas eu me salvei.
Estou na borda porque fui trazida para cá.
Mas as pernas que chegaram sabem voltar.
O abismo me olhou e eu olhei de volta.
E sorri.
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